O que vem a seguir não é uma resenha. É um apanhado de anotações que realizei ao longo da minha leitura de “O arco e a lira”, de Octavio Paz.
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É bastante difícil ler “O arco e a lira” e não pensar que se está diante do maior tratado sobre a poesia e a atividade poética. Ou, pelo menos, diante de uma obra grandiosa. A edição da Cosac Naify, publicada no Brasil em 2012, começa com uma carta de Julio Cortázar a Octavio Paz na qual o escritor argentino afirma que seu entusiasmo e sua alegria diante da obra “não são atitude de um novato, e sim, de reconhecimento – por fim – de um trabalho profundo e completo sobre algo que é de longe um dos fogos centrais, se não propriamente o fogo central do homem”. Ao ler isso, você sabe (eu soube) que irá ler algo especial.
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“O arco e a lira” está dividido em três partes: O poema; A revelação poética; Poesia e história. Nelas, Paz pretende encontrar as respostas para as seguintes perguntas:
- Há um dizer poético?
- O que dizem os poemas?
- E como se comunica esse dizer?
Ao longo da obra, o poeta e crítico reflete sobre o significado do poema, sua estrutura e sua importância no mundo ao longo de toda a história.
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O poema
Paz inicia sua reflexão a partir da linguagem (o livro foi lançado em 1956, época do auge do estruturalismo francês). Para ele, o homem é homem graças à linguagem. Cada palavra ou cada conjunto de palavras é uma metáfora, isto é, é passível de mais de um significado. E é a união entre a palavra e a coisa que origina a reconciliação do homem consigo mesmo e com o mundo. Aqui, começamos a entender que o poema é um dos poucos recursos do homem para ir adiante de si mesmo, ao encontro do que ele, de fato, é. O autor aprofunda essa ideia: ele afirma que o poema nos revela o que somos e nos convida a ser o que somos. Com ele, Aquiles e Odisseu são algo mais que duas figuras heroicas: são o destino grego criando a si mesmo.
Então, Paz lança uma pergunta importante: “que sentido têm, se é que têm algum sentido, as palavras e frases do poema?”.
A partir desta pergunta, Paz começa sua reflexão sobre o ritmo dentro da poesia. E quando ele fala em ritmo, vai muito, mas muito além da métrica. O crítico afirma que ninguém pode escapar do poder mágico das palavras. Adiante, ele explica tal magia: todo fenômeno verbal traz em si um ritmo, algo como um imã responsável por mover todo idioma. Toda criação poética convoca, assim, o ritmo como um agente de sedutor. E não se separa ritmo e palavra poética do mesmo modo que não há como dividir ritmo musical e a dança – não se pode afirmar que o ritmo musical é a representação sonora da dança; tampouco que a dança seja a tradução corpórea do ritmo. Isto é, um existe com o outro, sempre.
E é aqui, olha que bonito, que Paz anuncia uma de suas “descobertas” acerca da poesia: o ritmo não é medida. É visão de mundo. Tudo o que chamamos de cultura, diz ele, tem suas raízes no ritmo; é inseparável de nossa condição. Cada sociedade possui um ritmo. Cada ritmo é uma atitude, um sentido, uma imagem de mundo. E esta imagem, por sua vez, é a ponte que o desejo constrói entre o homem e a realidade.
Para o crítico, a linguagem nasce do ritmo. E é aqui que entendemos uma diferença crucial entre prosa e poema. O ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, porém, apenas no poema ele se manifesta plenamente. Sem ritmo, não há poema e só com ritmo não há prosa. Então, compreendemos por que a prosa (com todos os seus esforços para domar a fala) é um gênero tardio da literatura, enquanto a poesia pertence a todas as épocas – é uma expressão inerente à sociedade.
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Paz inicia no capítulo “Imagem” uma ideia que será essencial para a compreensão de boa parte do restante de “O arco e a lira”. Ele começa por contrapor o pensamento ocidental, que afirma que você é aquilo (em oposição a isto), e o oriental, que diz que você é aquilo e isto. O autor abraça o pensamento do oriente. A seguir, um conceito importante para o resto do livro:
“Pensar é respirar porque pensamento e vida não são universos separados, mas vasos comunicantes: isto é aquilo. A identidade última do homem e o mundo, a consciência e o ser, o ser e a existência, é a crença mais antiga do homem e raiz da ciência e da religião, da magia e da poesia”.
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Uma das questões abordadas pela filosofia é a definição de verdade. Para Paz, a verdade é uma experiência pessoal. O autor nos leva a pensar em um exemplo banal – uma cadeira mencionada em um poema. O poeta não descreve a cadeira; ele a coloca na nossa frente. Ela nos é dada com todas as suas qualidades e o leitor suscita em si o objeto que ele um dia percebeu. Ele recria a experiência da realidade, nos leva ao nosso cotidiano mais banal, mas também à realidade mais obscura. A cadeira pode, então, ser muitas coisas.
Logo, o poeta não quer dizer isto ou aquilo. Ele apenas diz.
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A revelação poética
Aquela ideia de o homem ser aquilo e isto fica mais clara nesta segunda parte de “O arco e a lira”. E será a partir dela que Paz explicará a revelação/atividade poética. Vamos por parte.
Para Paz, o homem sempre teve curiosidade pelo mundo do divino, que nos conduz a um mundo à parte, o mundo do sagrado. O crítico defende que entrar neste lugar à parte é possível. É possível pela habilidade do homem, a qual ele chama de salto-mortal.
“E talvez nossos atos mais significativos e profundos não passem de repetição desse morrer do feto que renasce como criança. Em sumo, o ‘salto-mortal’, a experiência da ‘outra margem’ implica uma mudança de natureza: é um morrer e um nascer. Mas a ‘outra margem’ está em nós mesmos. Sem nos mover, quietos, somos arrastados, impulsionados por um grande vento que nos expulsa para fora de nós. Ele nos joga para fora e, ao mesmo tempo, nos empurra para dentro de nós. A metáfora do sopro aparece repetidas vezes nos grandes textos religiosos de todas as culturas: o homem é desarraigado como uma árvore e arremessado para lá, para a outra margem, ao encontro de si. E aqui se apresenta outra característica extraordinária: a vontade intervém pouco ou então participa de forma paradoxal. Se foi escolhido pelo grande vento, é inútil que o homem tente resistir”.
Este outro que o homem encontra ao realizar o salto-mortal para a outra margem é ele mesmo. Causa a estranheza diante de si mesmo, da própria realidade, mas também diante de algo que a questiona: a identidade do próprio ser. É o fenômeno da outridade. Diante do outro, sempre há, primeiramente, a repulsa; depois a fascinação e,por último, a vertigem.
E a conclusão a que se chega depois do salto-mortal: este Outro também é eu. É o nosso duplo,que tentamos capturar e sempre nos escapa. Este é o sentido da verdadeira solidão. E nada pode trazer o Outro de volta a não ser o salto-mortal.
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Há uma semelhança muito grande entre o amor e essa experiência do sagrado – essa busca pelo Outro. Os poetas foram os primeiros a perceber tal similaridade. Seja na experiência amorosa, seja na experiência religiosa, o homem se imagina. Ao imaginar-se, ele se revela.
E todo amor é uma revelação, segundo Paz, um tremor que abala os alicerces do eu e nos leva a proferir palavras que não são muito diferentes das que o místico emprega. Na criação poética, acontece algo parecido. Ausência e presença, vazio e plenitude são estados poéticos tanto quanto religiosos ou amorosos. Logo, a experiência poética também é um salto-mortal; é uma mudança de natureza que também é a volta à nossa natureza original.
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Paz lança mais uma questão importante: Que vontade leva o poeta a escrever? A resposta mais comum talvez seja a inspiração. Porém, nunca ninguém conseguiu explicar o que ela é de fato. Os iluministas encontraram na razão explicação para tudo, exceto para a inspiração; por isso, decidiram ignorá-la ou afirmar que ela não existe. Já para Freud, o poético é a revelação do inconsciente.
Para o crítico, a resposta para a inspiração está na outridade, nesta morte e ressurreição permanente. A outridade explicaria o enigma dessa outra voz que o poeta ouve assim:
O poeta está diante do papel. Está só. O mundo se abre e se fecha. O poeta, então, retrai-se; ele quer recordar a linguagem. Mas não há mais “atrás” para ir. Então, ele é lançado para frente e chega ao estado em que se encontra fora de si. É preciso, assim, inventar as palavras. O poeta não as tira de si. Elas também não vêm do exterior. Aliás, não existe interior ou exterior: somos no mundo e o mundo é um dos constituintes do nosso ser. O mesmo vale para as palavras. Então o poeta dá o salto-mortal, renasce e é outro. Ou seja, ele não ouve uma voz estranha – ele mesmo é algo alheio.
Assim, Paz define a inspiração como a manifestação da outridade. É algo/alguém que nos chama para ser nós mesmos. E esse alguém é o nosso próprio ser.
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Poesia e história
Nesta terceira parte, Paz pretende explicar como o ato poético se insere no mundo. Para ele,todo poema tem uma maneira peculiar de ser histórico. Percebê-lo é ver a realidade histórica e a sociedade no qual um poema está inserido. Aí o crítico analisa a atividade poética e a literatura nas suas mais diversas fases: épica, lírica, drama, prosa, além da poesia contemporânea.
Infelizmente, não pude fazer muitas anotações sobre esta última parte – que não deixa de ser interessantíssima.
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Essa edição linda da Cosac Naify ainda traz outros ensaios, todos bastante interessantes. Gostei muito do “A nova analogia: poesia e tecnologia”, no qual Paz discute qual o papel da técnica na atividade poética.
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O arco e a lira
Octavio Paz
Cosac Naify
Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacth